ROGÉRIO MARINHO, O COFRE PARALELO DO GOVERNO
Antagonista de Paulo Guedes na Esplanada, ele faz do Ministério do Desenvolvimento Regional um balcão para agradar ao chefe, Jair Bolsonaro, e a insatisfeitos com a equipe econômica
Era manhã de sábado, 12 de setembro, quando o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, ligou para o governador de Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja (PSDB), para buscarem uma saída para controlar as chamas no Pantanal. Epicentro das queimadas, os municípios de Corumbá e Ladário pegavam fogo desde julho. O governo local já havia decretado situação de emergência e solicitado simbólicos R$ 528 mil do governo federal. No centro do poder, o governo pouco reagia aos incêndios que destruíam um dos principais biomas do país. Fundos de investimentos e bancos brasileiros alertavam sobre os riscos financeiros. Os apelos por um plano de combate à tragédia só foram ouvidos depois que começou a queimar, ao lado de onças e antas, a imagem do agronegócio brasileiro.
Ao telefone, Marinho prometeu enviar o secretário nacional de Proteção e Defesa Civil, Alexandre Lucas Alves, no dia seguinte, 13, para começar a estudar as medidas que deveriam ser adotadas para liberar recursos. Às 14 horas do domingo, o subordinado de Marinho desembarcou em Campo Grande com uma equipe de técnicos para visitar os incêndios e desenvolver projetos para o enfrentamento do desastre. “A orientação é não faltar meios para debelar o fogo que ameaça o Pantanal”, recomendou o ministro a sua equipe antes de despachá-la à região.
Depois do tardio decreto de emergência, Marinho liberou R$ 3,8 milhões para ações de combate a incêndios florestais em Mato Grosso do Sul e R$ 10,1 milhões em Mato Grosso. Fez questão de ir pessoalmente aos estados anunciar a boa-nova. “A agilidade que tiveram, nunca antes vista, fez com que pudéssemos tomar ações conjuntas”, enalteceu o tucano Azambuja, afirmando já ter decretado situações emergenciais antes, mas nunca ter recebido tratamento tão solícito por parte do governo.
A cena ilustra como um personagem lateral do entorno do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se tornou onipresente na administração federal e ganhou o rótulo de realizador, faz-tudo. Na linguagem de Bolsonaro, “é um ministro que entrega”, “cumpridor”. No jargão militar dos colegas palacianos, com Marinho “missão dada é missão cumprida”. Esses mesmos ministros são críticos a Paulo Guedes, da Economia, por considerarem-no alguém que promete e dificulta a entrega, além de não ter muita habilidade na articulação política.
No Palácio, Marinho ganhou voz não só no terceiro andar, onde passou a ser recebido com muito mais frequência no gabinete de Bolsonaro — esteve 30 vezes com o presidente de janeiro a agosto deste ano ante 13 encontros presenciais registrados na agenda em todo o ano de 2019 —, mas também no quarto andar, onde estão os colegas militares Walter Braga Netto, chefe da Casa Civil, e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo. O ex-deputado federal por dois mandatos, que se viu derrotado nas urnas em 2018, depois de ser o relator da reforma trabalhista, ganhou assento à mesa de Bolsonaro e virou voz ativa contra os planos liberais da “turma de Chicago”.
“ROGÉRIO MARINHO VIROU O PRINCIPAL DEFENSOR DO AFROUXAMENTO FISCAL DURANTE A PANDEMIA, AGRADANDO A MILITARES, E ENTROU EM COLISÃO ABERTA COM A EQUIPE ECONÔMICA DO GOVERNO”
Os papéis se inverteram entre Marinho e Guedes na primeira missão da qual foi incumbido no início da gestão Bolsonaro: aprovar as impopulares mudanças nas regras da aposentadoria. De fala mansa e jeito professoral, Rogério Marinho, de 56 anos, ocupou o vácuo político na articulação da proposta — deixado pela ineficiência do então ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni (DEM). O Planalto acumulava derrotas consecutivas. Marinho chegava cedo ao Congresso, passava na sala de líderes do chamado centrão — bloco de articulação política capitaneado por partidos como PP, Republicanos, PL — apagando incêndios e discutindo ponto a ponto os trechos que a equipe econômica entendia como fundamentais e aqueles que poderiam ser sacrificados para fazer a matéria andar.
Paulo Guedes, chamado de Posto Ipiranga por Bolsonaro, recebera carta branca para conduzir a política econômica do governo, mas tinha dificuldade em negociar. Marinho, à época, era o frentista perfeito. Abastecia, trocava os pneus e, se precisasse, ainda guaribava a lata velha que havia se tornado a articulação do governo. Auxiliares dizem que os dois tinham um excelente relacionamento enquanto Marinho era subordinado de Guedes. As mudanças na Previdência foram aprovadas, e o Planalto atribuiu a Marinho boa parte da vitória. O governo ganhava sua reforma. Guedes, seu antagonista.
Guedes tentou manter Marinho à sombra, incumbindo-o do papel de articulador da equipe econômica. O ministro, que tinha visto a luz do bolsonarismo, preferiu o sol. No início do ano, ele se uniu ao ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e a outros militares do governo e passou a defender a retomada de obras paradas. “Mas nada que extrapole o orçamento”, dizia. O discurso agradou a Bolsonaro e seu sonho de reeleição. Em fevereiro, foi chamado para assumir a pasta do Desenvolvimento Regional e tocar a “agenda de realizações” do governo. Ministro, criou um roteiro de obras de fácil execução que viraram vitrine das viagens do presidente pelo país. Agradou não só a Bolsonaro como a ministros que viram seus pequenos pedidos saírem do papel.
O voo solo de Marinho colidiu com os altos e baixos de Guedes no governo. O ex-subordinado do ministro da Economia apostou no medo que contagiou o Planalto — e parte da equipe econômica — de que um governo reformista por si só levaria a um efeito Mauricio Macri, o ex-presidente da Argentina que aplicou reformas a conta-gotas e foi derrotado nas urnas. Para o titular do Desenvolvimento Regional, 2020 é um ano de excepcionalidades fiscais em razão da pandemia do coronavírus — um verdadeiro pão com leite condensado para Bolsonaro e seus aliados com ímpeto desenvolvimentista dispostos a gastar. Tais ideias contrariaram Guedes, que passou a insinuar que nas atitudes do ex-subordinado havia um quê de traição. A proximidade de Marinho com governadores, em razão das atribuições de sua pasta, também incomodou o ministro da Economia, que enxergou ali uma proximidade excessiva com nomes contrários ao bolsonarismo e uma semente de deslealdade, em sua visão.
Apesar das divergências de ideias, a relação entre ambos é cordial. A quem lhe pergunta sobre desavenças com Marinho, Guedes se arrisca a mostrar algumas mensagens de WhatsApp que trocam entre si para reforçar que não há atrito. Guedes tem afirmado que diferenças políticas são “do jogo” e que há fatos públicos que mostram que a agenda de expansão de gastos não prevalece: um deles é o fracasso do Pró-Brasil, criado pelo núcleo militar, com o apoio de Marinho, para retomar obras e que foi colocado na gaveta. Marinho também poupa Guedes de críticas muito ácidas. Recentemente afirmou que o ministro tinha restrições ao direcionamento de mais verba aos programas de auxílio porque “ele mal conhece o Nordeste”. Em outra ocasião, ao responder a perguntas sobre conflitos, reiterou que Guedes é um dos nomes em que Bolsonaro mais confia. “O presidente às vezes está de saco cheio do Paulo Guedes, mas ele ama o Paulo Guedes.” No Palácio do Planalto, a percepção é que o dono da caneta vai se manter na plateia assistindo às desavenças, sem intervir. Na visão de palacianos, Bolsonaro usa essa disputa a seu favor, ora acenando para o mercado, ora para políticos sedentos por pequenas realizações para chamarem de suas.
“NOS CORREDORES DE BRASÍLIA E NA FARIA LIMA, HÁ QUEM DIGA QUE MARINHO TENTA SE CACIFAR PARA VOOS MAIS ALTOS — TORNAR-SE DONO DO COFRE. PARA UM PRESIDENTE DE OLHO NA REELEIÇÃO, ELE TEM SE TORNADO O ALIADO IDEAL”
Marinho entende o jeito de Bolsonaro fazer política e joga o jogo. Na semana passada, em live com investidores e executivos do mercado financeiro, alfinetou Guedes. Disse que o que derruba o país não é realizar uma obra aqui outra acolá, e, sim, a inabilidade política de “alguns” em tratar de temas delicados como as reformas. O nome do colega não foi citado, mas o recado estava dado. Poucas semanas atrás, estava ao lado de Guedes em pronunciamento no Palácio da Alvorada em apoio ao teto de gastos. Apesar de Guedes ter conseguido a sinalização pública de Bolsonaro a favor da medida, o presidente também concorda cada dia mais com a agenda de retomada de obras. Da ala militar do governo, desenvolvimentista por natureza, Marinho só recebe elogios. É um “político habilidoso”, “capaz de criar alternativas e construir pontes”, “determinado em seus objetivos” e “realizador”. Os atributos de Guedes são outros. “Humor difícil”, “temperamental” e “arrogante”.
Na famosa reunião ministerial de 22 de abril, que foi tornada pública pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pela primeira vez o antagonismo entre os dois ministros foi exposto, e Guedes fez duras críticas ao Pró-Brasil. Comparou o plano ao que “Lula” e “Dilma” estão fazendo há 30 anos. “O presidente vai ser reeleito se nós seguirmos o plano das reformas estruturantes originais”, afirmou Guedes no encontro. Contrariado com o que chamou de deslealdade, alertou Jair Bolsonaro e Braga Netto sobre a inviabilidade de gastos. A fala irritou militares, em especial o titular da Casa Civil, que era o idealizador da medida. Marinho, vendo novamente o vácuo, apresentou uma agenda paralela de obras para tocar, em especial aquelas já começadas por outros governos e que poderiam ser entregues ainda antes de 2022. Ganhou sinal “verde-oliva” à revelia das restrições econômicas.
Interlocutores de Guedes avaliam que o rumo da disputa entre ele e Marinho sobre a ampliação de gastos deu, no dia 12 de agosto, uma guinada que beneficiou o ministro da Economia. Naquele dia, o presidente Jair Bolsonaro reuniu no Palácio da Alvorada lideranças do Congresso e ministros para passar a mensagem de que o Brasil respeitaria o teto, que é a única âncora fiscal da política econômica hoje. “Nós respeitamos o teto dos gastos. Queremos a responsabilidade fiscal. E o Brasil tem como realmente ser um daqueles países que melhor reagirá à questão da crise”, disse Bolsonaro, ladeado por Guedes, Marinho e pelos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). A cena montada por Bolsonaro foi uma resposta às fortes declarações de seu ministro da Economia no dia anterior, convocada às pressas pelo governo. Pressionado a gastar mais, Guedes havia dito que conselheiros presidenciais “fura-teto” estavam levando o presidente para uma “zona sombria, uma zona de impeachment”. Guedes nunca nominou Marinho, mas o destinatário entendeu.
No jogo de aparências, Guedes repete a pessoas próximas que o encontro mostrou qual lado foi vencedor, ao menos por enquanto. Nos dias seguintes, as declarações públicas de Bolsonaro em defesa das regras fiscais passaram a ser mais frequentes. Mas nem todos os dias foram vitoriosos. Quando Guedes prometeu — e não cumpriu — realizar em Brasília um “Big Bang Day” para apresentar um pacote ambicioso de propostas na área econômica, foi Marinho quem ocupou os holofotes com o lançamento do Casa Verde e Amarela, uma reformulação do Minha Casa Minha Vida. O ministro da Economia não foi à solenidade no Palácio do Planalto. A interlocutores, disse não gostar de aparecer em eventos que representem aumento de gastos públicos.
Assessores de Guedes admitem que a pressão por gastos continua e se seguram em frágeis promessas de Bolsonaro — que ao primeiro sinal de perda de popularidade pode jogar tudo para o alto de novo — e de alguns deputados governistas como o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). “O Paulo não está mais sozinho”, disse uma fonte ligada à Economia. Marinho tem ganhado o Congresso no bolso. O ministro tem conseguido empenhar emendas de deputados e senadores para obras. Neste ano, de R$ 4 bilhões de recursos do Orçamento distribuídos a critério do Parlamento, R$ 1,5 bilhão foi distribuído pelas mãos de Marinho, mais até que o empenho do Ministério da Saúde em plena pandemia, que gastou R$ 970 milhões nessa mesma rubrica.
“CAMALEÃO, MARINHO JÁ FOI SOCIALISTA DEFENSOR DO EX-MINISTRO DA EDUCAÇÃO FERNANDO HADDAD E TUCANO APOIADOR DE AÉCIO NEVES E JOSÉ SERRA. HOJE, ABRAÇA O BOLSONARISMO RAIZ”
Nos corredores de Brasília e na Faria Lima, há quem diga que Marinho tenta se cacifar para voos mais altos — tornar-se dono do cofre. Sua carreira política estava em franca ascensão desde 2018, quando aprovou a reforma trabalhista de Michel Temer. O eleitor pode não ter gostado, tanto que não o reelegeu naquele ano, mas o mundo político passou a vê-lo como encantador de serpentes. Herdeiro de uma família de políticos do Rio Grande do Norte ligada ao PSB, sempre ocupou cargo público. Em 2009, abandonou o partido depois de ser preterido para concorrer à prefeitura de Natal, após uma aliança do PSB com o PT que apoiou a petista Fátima Bezerra. Ressentido com o golpe, migrou para o PSDB e se tornou crítico do governo. Em 2012, conseguiu encampar a candidatura tucana para a prefeitura de Natal, mas terminou em quarto lugar. Em seu voto pelo impeachment de Dilma, como deputado federal, em 2016, Marinho fez ataques ao partido ao qual antes se aliara. “O impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a retirada dessa quadrilha do poder vão permitir que o povo brasileiro volte a acreditar no seu futuro com força, coragem, serenidade e cabeça erguida, contando com as bênçãos de Deus”, criticou. Agora, segundo aliados, quer ser reconhecido como o ministro que vai aposentar o caminhão pipa, resolvendo a transposição da água para o Nordeste.
Em tempos de movimentos políticos grosseiros, como se vê regularmente no governo Bolsonaro, Marinho se destaca por um uso mais sofisticado de estratégias de ação. Sua recente saída do PSDB é um emblema dessa diplomacia. Pediu cancelamento de sua filiação ao partido de João Doria — inimigo declarado do presidente —, mas não antes de tentar uma aproximação entre tucanos e Bolsonaro. No final do primeiro semestre, segundo relatos de dois grão-tucanos, articulou um encontro discreto entre o mandatário e Bruno Araújo, presidente da sigla, no intuito de promover a entrada do PSDB no chamado “armistício patriótico”, que é o nome dado pelo centrão à nova base que se formou neste ano com partidos como PP, PL, Republicanos e PSD.
Com o governador de São Paulo buscando espaço no pleito de 2022, Araújo foi ao encontro com o presidente, mas não viu clima para uma aproximação. Contudo, aceitou sem rancores que Marinho se afastasse do partido, numa espécie de licença, com o compromisso tácito de abrigá-lo novamente dentro de dois anos. O hoje ministro aprendeu que é melhor semear votos em sua terra natal para não correr o risco de ficar na chuva, como ocorreu em 2018. Por isso, deseja se candidatar em 2022 ao Senado ou ao governo de seu estado. Como o PSDB não tem candidaturas fortes no Rio Grande do Norte para os dois postos, Marinho teria caminho livre. Para pavimentar o bom relacionamento com os tucanos, desfiliou-se entregando a Araújo uma lista de prefeitos do Nordeste, candidatos à reeleição, dispostos a trocar de partido e migrar para o PSDB. Um deles é Álvaro Dias, prefeito de Natal, que deixou o MDB rumo ao tucanato a pedido de Marinho e tem pontuado mais de 40% dos votos nas pesquisas — portanto, com altas chances de se reeleger, dando ao PSDB sua primeira prefeitura na capital potiguar.
A Marinho também se atribui uma chamada “bolsonarização” tucana no Norte e Nordeste do país, a que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deu o nome de “namoro com Bolsonaro”, em entrevista a ÉPOCA no início do mês. Figuras históricas do partido e que estavam escanteadas, como Simão Jatene, voltaram a se organizar no Pará defendendo bandeiras de Bolsonaro — num movimento seguido pelo prefeito de Belém, o tucano Zenaldo Coutinho. No Maranhão, o senador Roberto Rocha é visto como o “homem do Bolso”. Tucanos não acreditam que a guinada à direita de alguns membros do partido se deva a Rogério Marinho, que nunca deu sinais patentes de extremismo. Mas a organização partidária de alas antes enfraquecidas é vista como obra do ministro. “Ele saiu do partido, mas ao mesmo tempo montou uma estrutura partidária onde não havia”, disse um tucano. Apesar do bolsonarismo de ocasião, Marinho não dinamitou pontes com João Doria, de quem era próximo até o início do governo Bolsonaro. Hoje o contato é mais restrito, mas não se ouve do governador de São Paulo críticas ao ministro — nem mesmo nos bastidores.
Por enquanto, nem mesmo as investigações em curso contra ele — Marinho é alvo de cinco inquéritos autorizados pelo Supremo Tribunal Federal — ou o fato de ser tucano abalam sua imagem junto a Bolsonaro. O ministro deverá depor à Justiça em novembro em um caso de improbidade administrativa. Ele é réu em uma ação civil de improbidade ajuizada pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte, em 2014, na qual é acusado de enriquecimento ilícito quando era presidente da Câmara de Vereadores de Natal. Os advogados do ministro afirmaram, em nota, que a defesa “será feita no foro adequado, com transparência e confiança de que nenhuma lei foi transgredida”. Marinho é acusado de, entre 2005 e 2007, autorizar a contratação de funcionários-fantasmas para que vereadores embolsassem os salários. Uma espécie de rachadinha. Nada que o impeça, neste governo, de continuar em ascensão.
Fonte: Época.