Uma nova profissão se consolida no Brasil, na esteira do crescimento de plataformas digitais de serviços e do turismo desde a pandemia: a dos guias de experiências locais. São pessoas que se cadastram em aplicativos como Airbnb Experience e Viator, do TripAdvisor, para comercializar passeios únicos em suas cidades, pouco comuns nos pacotes convencionais de turismo.
É como ter um “amigo local” num destino desconhecido, que apresenta atrações frequentadas só pelos nativos e afasta de roubadas, mas com a diferença de que é preciso pagar pela companhia dele.
Os guias de experiências lideram visitas a restaurantes e botecos, museus e obras de arte ao ar livre, trilhas e vistas de ângulos inusitados e até o acesso a festas. Tudo fora dos circuitos turísticos ou com um atendimento personalizado, promovendo uma imersão na cultura de cidades brasileiras, algo mais valorizado pelos viajantes após a Covid-19.
Mergulho no cotidiano e em comunidades locais
Presidente executiva da Associação Brasileira das Operadoras de Turismo (Braztoa), Marina Figueiredo diz que turistas não querem mais só passear, mas mergulhar no cotidiano e nas comunidades locais. O encontro dessa demanda com os profissionais acabou facilitado pelas plataformas digitais que eram referência em hospedagem e restaurantes.
Depois de anos acompanhando o concurso Comida Di Buteco, no Rio, Murillo Pijnappel, de 35 anos, resolveu montar um roteiro com os melhores pratos da cidade. Ele anuncia o passeio em plataformas digitais desde 2018. Seus clientes experimentam quitutes em cada um dos quatro bares que ele apresenta em cada noite. O tour custa R$ 500 por pessoa e inclui comida e bebida sob curadoria dele.
— Percebi como os estrangeiros acabavam presos ao óbvio no Rio: restaurantes, sobretudo na Praia de Copacabana, que servem qualquer coisa, de pizza a churrasco. Turistas querem uma experiência local e não conseguem isso de outra forma — diz o carioca.
Pijnappel manteve o emprego como consultor financeiro em uma empresa de e-commerce até o início deste ano, quando se licenciou como guia de turismo e passou a se dedicar só aos passeios. Recentemente alcançou a mesma remuneração do antigo emprego.
Como guia de turismo é uma profissão regulamentada no Brasil, quem atua nessa área deve se registrar no Cadastro de Prestadores de Serviços Turísticos (Cadastur), do Ministério do Turismo. Para ter a carteirinha, é preciso um certificado de conclusão do curso técnico em Turismo.
Um casal canadense usou a mesma expressão para descrever Pijnappel em um dos passeios organizados por ele na Zona Sul do Rio que O GLOBO acompanhou. Representante de vendas corporativas do Google, Casey Lynn, de 50 anos, disse que faz toda a diferença ter alguém que realmente “vive” a cidade apresentando lugares que “você não conheceria de outra forma”.
É o caso da Adega Pérola, tradicional botequim de Copacabana que não fica nas imediações do calçadão. Ela ficou espantada com a variedade da vitrine de petiscos carioquíssimos e ouviu do guia explicações sobre origem e manutenção do bar de 66 anos.
— Queremos sair para dançar e testar experiências locais. É mais que um guia, é um amigo na cidade — diz Casey, que sempre faz passeios imersivos com o marido, John Kearney, de 57, nos países que visitam.
Pela Vila Madalena
Formada em Administração e Economia, Letícia trocou o mercado de trabalho formal pelos passeios pela Vila Madalena, em São Paulo, onde sempre morou, em 2017. Além da gastronomia local e dos grafites coloridos, o tour dela inclui galerias de arte e bares.
— Os europeus chegam tímidos, com medo. Depois de uma caipirinha, ficam tranquilos. Termino no Buteco do Ed, onde tem caipirinhas de caju, jabuticaba. É onde meus clientes mais gostam de ir.
A pandemia foi difícil, mas a retomada veio turbinada. Na alta temporada, Letícia fatura até R$ 6 mil por mês com os passeios de três horas. Está disponível todos os dias, mas geralmente tem reservas para três ou quatro tours por semana. Quando trabalhava numa produtora de conteúdo, trabalhava até 12 horas por dia com renda similar.
A guia e turismóloga Luciana Morozini, de 42, faz caminho inverso. Atuava em agências no Rio, migrou para as plataformas em 2015 em busca de autonomia, mas vai voltar:
— No início, eu tinha mais clientes, ganhava dinheiro. Agora, o fluxo diminuiu, e estou em busca de estabilidade com as agências novamente. A gente já sabe o que vai ganhar com a agência, enquanto as plataformas são instáveis.
Especializada em turismo noturno, guiando entre bares e atrações da Lapa e de Santa Teresa, Luciana agora vende um roteiro de rooftops (terraços). É um conceito comum lá fora: descolar pontos de vista privilegiados para o pôr do sol.
Segundo Luciana, as agências estão se ajustando ao mercado de experiências, incorporando nos pacotes as mesmas visitas disponíveis nas plataformas digitais. É o caso da CVC que, em 2022, expandiu seu portfólio de passeios.
Mão e pé na massa
É possível marcar almoços com um astronauta da Nasa que já esteve na lua ou passeios de barco em lagos de jacarés nos EUA. Outro exemplo é a colheita de uva na Serra Gaúcha, de fevereiro a março. Viviane Pio, diretora de Vendas da CVC, diz que o turista não quer mais só visitar a vinícola, mas fazer seu próprio vinho, com direito a pisotear uvas:
— Passamos a fechar parceria com eventos e empresas que proporcionam essa experiência. Temos um time que visita locais para entender a dinâmica, e formatamos para tornar isso tudo um produto.
A Smiles Viagens já nasceu com foco no turismo de experiência, com pacotes incluindo cruzeiros no Amazonas, excursões no Pantanal e bastidores do carnaval carioca, conta o líder da empresa, Rodrigo Possatto. A Decolar prevê alta de 53% nas buscas por experiências em 2023. A plataforma agora oferece tours em comunidades do Rio, shows passeios em escolas de samba. Mas Daniela Araujo, diretora de Produtos Não Aéreos da Decolar, diz que o turismo tradicional segue em alta:
— O turismo de experiência é mais um agregador que um competidor. As praias sempre serão um atrativo do Brasil, mas quando trazemos mais, aumentamos a atração de estrangeiros para o Brasil.
É guia de turismo ou não é?
Embora os guias de experiências locais evitem a denominação formal de “guias de turismo”, o professor de Direito Civil da FGV Daniel Dias afirma que a atividade é turística. Por isso, ele avalia que as plataformas digitais deveriam exigir cadastro profissional:
— Plataformas não podem dizer que “não é com elas” e têm dever de fiscalização das atividades oferecidas por meio dos sites e aplicativos.
O presidente da Liga Independente dos Guias de Turismo do Rio (Liguia) sugere que o curso técnico em turismo, uma das exigências do cadastro nacional (Cadastur), seja mais aprofundado e estendido aos profissionais de experiências.
Ele destaca como importante que profissionais conheçam técnicas de guiamento, conteúdos de História e Geografia e curiosidades sobre destinos, além de primeiros socorros. Mas ele avalia que a exigência da carteirinha profissional depende de cada caso.
Atividades como aulas de surfe para turistas podem não exigir um guia, mas passeios e tours em áreas turísticas claramente se enquadram como atividades de profissionais.
O Ministério do Turismo diz ser importante diferenciar o guia de turismo de um “mero anfitrião”. “Se um cidadão se intitular guia de turismo e não preencher as condições da lei, configura-se contravenção penal, pois se trata de exercício ilegal da profissão”, afirma em nota.
O Airbnb informou que incentiva o turismo nas comunidades, “permitindo que os moradores consigam uma renda extra” e “impulsionando o comércio local nos bairros onde os hóspedes se encontram”. O TripAdvisor não respondeu.
O Globo