Uma nova proposta para o Código Civil, que prevê a proibição de aluguéis por curta temporada em condomínios, pode impactar não apenas os proprietários, mas diversos empregos indiretos e o setor de turismo do País, além de colocar em risco uma importante fonte de renda de muitas pessoas que investem em imóveis. É o caso de Sebastião Dono Saar, diretor de escola pública e síndico profissional, que calcula que sua renda cairia em cerca de 80% caso a medida seja aprovada.
A possível proibição afeta principalmente os negócios de usuários de plataformas digitais de locação, como Airbnb e Booking.com, um dos principais meios de hospedagens fora da rede hoteleira. Segundo os dados mais recentes do Airbnb, de 2022, os gastos de hóspedes totalizaram US$ 5,2 bilhões naquele ano (excluindo gastos com acomodações), impactando diversos setores na economia local. O mesmo levantamento mostrou que os gastos de hóspedes representaram 5,2% de toda a atividade turística direta do Brasil.
Uma outra pesquisa, realizada pela Seazone, plataforma que oferece locação de temporada e serviços relacionados ao setor, revelou que Rio de Janeiro, São Paulo e Florianópolis foram as cidades com mais anúncios no Airbnb em 2023. No mesmo ano, somente a região Sudeste do País acumulou mais de R$ 7,5 bilhões em reservas.
Os 9 imóveis que Saar aluga, por exemplo, ficam no Guarujá, cidade litorânea de São Paulo, conhecida pelo turismo de veraneio. O estudo da Seazone indicou que a cidade foi a quarta com maior faturamento do estado no ano passado, cerca de R$ 300 milhões, apenas com aluguéis de temporada curta.
Porém, apesar dos lucros, o anfitrião alega que a maior parte do dinheiro recebido com os aluguéis temporários é destinada ao pagamento de despesas dos apartamentos, contas pessoais e aos financiamentos imobiliários que fez para adquirir os imóveis em locação. Ele já investe nesse mercado desde 2011, sempre em formato de locação curta, e afirma que os lucros obtidos com um aluguel tradicional são bem diferentes dos que consegue por meio de plataformas digitais.
“Na locação tradicional, cada apartamento pagaria em torno de R$ 4,5 mil. Se eu tirar as despesas do imóvel mais o IPTU seriam já R$ 1,5 mil, mas a parcela do financiamento de um deles é R$ 2,9 mil. Então, eu teria R$ 100 de lucro mensal com um imóvel de R$ 600 mil. Já na locação de curta duração, a média mensal gira em torno de R$ 9 mil. Com os mesmos descontos, sobram R$ 4,5 mil na média”, explica Saar.
O mercado de aluguéis também ajuda a fomentar diversos empregos indiretos. Em 2022, por exemplo, o Airbnb criou cerca de 115 mil empregos apoiados pelos gastos de hóspedes. Foram US$ 4,1 bilhões em salários e outros rendimentos na época. A nova proposta do Código também pode afetar esses trabalhadores.
Cintia Rodrigues, administradora de imóveis pelo Airbnb, também usa esse mercado como principal fonte de renda. Aposentada, ela administra o anúncio de 15 imóveis atualmente, localizados em Santa Catarina, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Os rendimentos funcionam como uma renda extra para Rodrigues, mas ela afirma que a possível mudança pode pesar no bolso.
Outra administradora de imóveis, Roseli de Biasi, que também é aposentada, revelou que os ganhos dessa profissão dependem da taxa estabelecida pela própria plataforma. Ela alega receber entre 3% e 10% em cada um dos 11 imóveis que administra para aluguel de curta temporada, a depender do valor da diária – que é estabelecido pelo proprietário.
Biasi ainda faz uma comparação: os aluguéis de temporada geram renda anual até 15% maior do que a renda anual de um aluguel tradicional. Por exemplo, se um imóvel rende R$ 2 mil ao ano, uma locação de hospedagem temporária traz um retorno de R$ 2.300 ao final do mesmo período. Apesar de a administradora não viver desse dinheiro, ela afirmou que uma mudança no Código Civil afetaria suas finanças.
Qual é a proposta para os aluguéis de curta temporada?
A principal alteração se encontra em uma nova proposta de revisão do Código Civil – que está em análise do Senado, como foi mostrado nesta reportagem do Estadão – para impedir as hospedagens atípicas, ou seja, aluguéis aleatórios e de períodos menores a 30 dias.
O Artigo 1.336, com acréscimo do parágrafo 1º, exige que, nos condomínios residenciais, aqueles que usam seu imóvel para fins de hospedagem atípica – ou seja, inquilinos de alta rotatividade que ficam menos de 30 dias – podem continuar com a locação apenas com autorização expressa dos demais moradores, que deve ser votado em assembleia. A proposta, no entanto, ainda não foi aprovada e não há como saber quando ela será implementada.
Rafael Marinangelo, pós-doutor pela Faculdade de Direito da USP e especialista em Direito Civil, explica que a discussão sobre uma modificação nesses aluguéis já existe há algum tempo. Para ele, essa atualização do Código propõe um entendimento mais preciso sobre o tema para não ficar mais na guarda judicial — que torna as decisões sujeitas a interpretações diversas nos tribunais.
A proposição ainda entra em conflito com a atual Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91), que permite a locação por temporada curta de 1 a 90 dias. Nesse caso, o advogado defende que a mudança surge da necessidade de uma nova regulamentação para esse tipo de hospedagem, pois o aluguel por temporada possui a idealização de um contato mais próximo com o inquilino.
O Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação ou Administração de Imóveis Residenciais ou Comerciais (Secovi), por sua vez, acredita que não há como separar os dois conceitos, já que na prática funcionam da mesma forma. Porém, o diretor de Legislação do Inquilinato do Secovi-SP , Jaques Bushatsky, alerta que o problema se encontra nos “3Ss do condomínio”: sossego, salubridade e saúde dos moradores.
Já Omar Anaute, presidente da Associação de Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios (AABIC-SP) revela que a grande maioria das convenções residenciais define o uso dos edifícios como estritamente residencial, o que, na visão da entidade, exclui a hospedagem de curto prazo, pois não se caracteriza como residência.
Contatado, o Booking.com afirmou que está comprometido a operar de acordo com as legislações de cada mercado que a empresa está presente. O Airbnb, por sua vez, reitera que o aluguel por temporada no Brasil é legal, expressamente previsto na Lei do Inquilinato e proibir ou restringir a locação por temporada viola o direito constitucional de propriedade de quem aluga o seu imóvel.
O que pode mudar para o bolso dos locadores e locatários?
Um dos principais impactos financeiros é a oscilação de oferta e demanda. Caso a medida seja aprovada, muitos anfitriões podem ser proibidos de seguir com os aluguéis, o que limita o número de propriedades disponíveis para esse tipo de locação. E, por lei de mercado, os imóveis restantes nesse formato aumentam seu preço.
Ana Rita Marques, anfitriã de um imóvel no litoral de São Paulo, revela que utiliza plataformas de aluguel há cerca de dois anos, gera um lucro que é investido no próprio apartamento. “Uso esse dinheiro para manutenção do próprio apartamento: IPTU, condomínio, luz, telefone, internet, ou uma possível reforma, para que isso não saia do meu orçamento pessoal”, comenta.
Marques, que é professora e enfermeira, revela ter uma conta destinada apenas à renda e aos gastos do imóvel em aluguel, mas o montante não traz lucros para além da manutenção do próprio imóvel, apenas em épocas de muito fluxo – que geralmente ocorre nas férias de verão. Caso a prática seja proibida, ela confessa que terá de buscar recursos pessoais na hora de arcar com os custos do apartamento.
Daniela Poli Vlavianos, sócia do escritório Poli Advogados & Associados, revela que uma das principais consequências para os locatários será a possível redução na rentabilidade de seus imóveis. Além disso, o processo de obtenção dessa aprovação dos moradores implicará em custos adicionais para os proprietários, como a necessidade de convocar assembleias, contratar advogados ou até mesmo pagar taxas administrativas. Esses custos extras, inevitavelmente, reduzirão a margem de lucro.
Além disso, a dificuldade em alugar o imóvel por temporada pode causar uma desvalorização do bem. Se a regulamentação for restritiva, isso vai tornar o imóvel menos atraente no mercado, afetando seu valor. O diretor de Legislação da Secovi mostra que é essencial estar mais atento ao impacto que a aprovação pode gerar nos locatários, já que muitos dependem do dinheiro desses aluguéis atípicos para viver.
Para o síndico profissional, a possível aprovação da medida o faria vender todos os seus imóveis e tentar investir em outro mercado. “Não teria como ficar sustentando 9 imóveis sem o retorno financeiro que eles dão. Talvez eu também tentaria vender os que tenho e comprar outros em condomínios que permitam esse tipo de locação”, comenta.
Saar também pretende comprar apartamentos em São Paulo para o mesmo fim, já focando em condomínios que permitem a locação por temporada. O levantamento da Seazone, destacado no início desta reportagem, indicou que a capital teve um faturamento total de aproximadamente R$ 4,14 bilhões com esse tipo de aluguel em 2023, o maior retorno do Brasil.
A publicitária Barbara Maués costuma alugar imóveis disponíveis em sites. Quando viaja, ela acredita ser mais simples e barato, além de mais seguro, alugar um apartamento do que se hospedar em um hotel. Maués também mora em um apartamento alugado, mas com um contrato de longo prazo. O curioso, no seu caso, é que no condomínio em que vive, em São Paulo, ela não se sente confortável com as hospedagens atípicas e votaria pela proibição em uma possível assembleia com os demais moradores.
Mesmo que não seja possível definir se a proposta será aceita, ou quando, a discussão sobre hospedagens atípicas exige atenção e cautela. Entre os especialistas, o tema também é divergente e deve ser analisado com cuidado. Além disso, é essencial que os anfitriões ou quaisquer profissionais que dependem da renda de aluguéis por plataformas tenham uma boa organização financeira, para não sofrer prejuízos.
E-investidor - Estadão