Apreço de Lula pela democracia flutua segundo conveniência
Presidente posa de democrata, mas não teve constrangimento em ir a Moscou participar de desfile ao lado de ditadores
Uma semana atrás, editorial neste mesmo espaço criticou a ida do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Moscou para participar dos festejos pelos 80 anos da vitória na Segunda Guerra, promovidos pelo autocrata Vladimir Putin. A realidade se revelou mais constrangedora do que se antevia. Nas imagens do desfile militar na Praça Vermelha, Lula — eleito empunhando a bandeira da democracia e alvo de uma tentativa de golpe de Estado — aparece ao lado de um escol invejável de ditadores. Lá estão Ibrahim Traoré, de Burkina Faso, Umaro Sissoco Embaló, de Guiné-Bissau, Abdel Fattah el-Sisi, do Egito, Emmerson Mnangagwa, do Zimbábue e Denis Sassou Nguesso, da República do Congo. Mais distantes, o venezuelano Nicolás Maduro e o cubano Miguel Díaz-Canel. Sem esquecer o anfitrião Putin.
“Lula se elegeu com um discurso de defesa da democracia, afirma ter combatido um golpe de Estado no 8 de Janeiro. Agora aparece ao lado não apenas de ditadores, mas também de criminosos de guerra”, disse ao GLOBO Vitelio Brustolin, professor de relações internacionais da Universidade Federal Fluminense e pesquisador da Universidade Harvard.
Questionado sobre a ausência de líderes democráticos, Lula revelou seu desapreço pela História. Afirmou que “a Europa inteira deveria estar fazendo festa” e insinuou que outros países da União Europeia deveriam ter marcado presença em Moscou, em vez de gastar em armas para se precaver contra a ameaça russa. Ora, todos os países europeus celebram a vitória sobre o nazismo. Lula esquece que, ao invadir a Ucrânia, a Rússia mostrou não ter respeito pela integridade territorial dos vizinhos. Apelos genéricos em favor da paz de nada servem ante riscos que o próprio Lula reconhece implicitamente ao citar a luta contra a Alemanha nazista (cujo avanço foi facilitado pelos que pregavam a “paz” no Ocidente).
Lula parece acreditar que o Brasil pode ter papel importante para que Rússia e Ucrânia alcancem a paz. “A guerra só pode acabar se os dois quiserem”, afirmou. “Então, eu vou continuar trabalhando no grupo de amigos.” Fora do círculo próximo de Lula, porém, ninguém acredita que ele possa ter relevância nas negociações. O Brasil não tem assento no Conselho de Segurança da ONU, Brasília fica a mais de 10 mil quilômetros do cenário de guerra, e os ucranianos consideram Lula parcial. Não há motivo para ser ouvido como parte isenta.
Outro pretexto foi alegado para justificar a viagem: o déficit comercial de quase US$ 11 bilhões do Brasil com a Rússia. Em vez de aderir às sanções impostas a Putin, o Brasil se tornou grande importador de diesel russo, que se soma aos fertilizantes imprescindíveis para o agronegócio. Mas tais necessidades não justificam sua presença em Moscou. Por fim, Lula também afirmou almejar um acordo estratégico com a Rússia. Quem tem esse tipo de ligação com Putin são países como Coreia do Norte, Venezuela ou Irã. Será esse o “grupo de amigos” de Lula?
O desfile na Praça Vermelha não passou de peça de propaganda de Putin. Outros líderes democráticos foram convidados e declinaram sem embaraço diplomático. A única explicação para o presidente de uma democracia pujante como a brasileira participar de tal pantomima em má companhia é que seu apreço pela democracia — tão propalado pelos apoiadores — flutua segundo a conveniência e a ideologia.
Editorial O Globo