Ao discursar na conferência anual do Partido Conservador em outubro de 1983, a então primeira-ministra britânica Margaret Thatcher resumiu com eloquência um princípio que deveria nortear qualquer governante: o de que não existe dinheiro público, há apenas o dinheiro dos contribuintes.
Por isso, aplicá-lo bem deveria ser um compromisso moral dos gestores — sejam eles políticos eleitos ou servidores de carreira. No caso dos governos petistas, esse tipo de ensinamento costuma ser ignorado, como demonstra o apego ideológico em defesa de alguns notórios ralos que drenam os já escassos recursos da União.
É o caso das estatais federais, cujo déficit acumulado de janeiro a abril saltou 68% ante o mesmo período do ano passado e atingiu o recorde de 2,7 bilhões de reais, segundo o Banco Central. “A cifra em si não é grande, diante de outros gargalos fiscais”, diz Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central e colunista de VEJA. “Mas ela passa um sinal muito ruim para o mercado sobre como o governo administra suas empresas.”
A displicência com o dinheiro dos contribuintes permitiu que as 122 estatais da União encerrassem 2024 com um rombo acumulado de 6,7 bilhões de reais, multiplicando por dez o déficit de 656 milhões do ano anterior. O Palácio do Planalto argumenta que os números mostram a retomada dos investimentos estratégicos por parte das companhias, após o represamento promovido pelo governo Bolsonaro. A explicação, porém, esbarra na falta de transparência sobre a destinação efetiva desses recursos. “Com certeza, as estatais não investiram tudo o que dizem”, afirma Schwartsman. “O governo precisa detalhar esses gastos.” Seria uma atitude salutar, já que esse déficit é coberto pelo orçamento reservado a despesas não obrigatórias, conhecidas como discricionárias. Com o crescimento acelerado dos gastos obrigatórios com a Previdência Social, a saúde e a educação, entre outros, essa fatia do Orçamento encolhe a cada ano e o próprio Ministério do Planejamento estima que ela se esgote já em 2027. Se a previsão se confirmar, a máquina pública será paralisada.
O impacto será maior nas chamadas estatais dependentes. O grupo é composto por dezessete empresas que quase não geram receitas próprias e sobrevivem às custas do Tesouro. É o caso da Telebras. Extinta em 1998 após a privatização do setor de telefonia, a companhia foi recriada por Lula em 2010, durante seu segundo mandato, para fornecer internet rápida às escolas públicas. Desde então, a Telebras acumula perdas. No ano passado, o aporte de 158 milhões de reais realizado pelo Tesouro não impediu a empresa de registrar um prejuízo de 67 milhões.
As causas da crônica ineficiência das estatais são bastante conhecidas e vão do loteamento político de cargos executivos à falta de incentivo para que os demais funcionários melhorem os resultados, passando pela pesada burocracia que trava sua gestão. Tais fatores, porém, não devem estimular a indulgência com a má administração, como se fosse algo inevitável que condenasse as companhias públicas a perder a corrida contra suas rivais privadas. “As empresas privadas tendem a ser mais eficientes”, diz Gesner Oliveira, sócio da GO Associados e ex-presidente da Sabesp, a concessionária paulista de saneamento. “Mas isso não pode servir de desculpa para os grandes prejuízos das estatais.”
Mesmo aquelas que geram receita suficiente para não depender do Tesouro são vistas com reservas pelo mercado. Um exemplo recente é o Banco do Brasil, que causou uma péssima impressão ao divulgar um lucro de 7,4 bilhões no primeiro trimestre deste ano. O resultado, que representa uma queda de 21% em relação ao do mesmo período de 2024, acarretou um tombo de 13% na cotação de suas ações. Entre as causas do mau desempenho está a lentidão em aderir à Resolução nº 4.966 do Conselho Monetário Nacional, que alterou os critérios de reconhecimento de algumas receitas das instituições financeiras. “Os outros bancos já haviam aderido às novas regras”, diz João Abdouni, analista da casa de análise Levante. “O fato de o Banco do Brasil adotá-las apenas agora prejudicou os resultados.” O atraso custou caro: enquanto suas ações acumulam perda de 10% neste ano, rivais como o Itaú e o Bradesco festejam uma disparada de 38% e 49% nos preços de seus papéis, respectivamente.
Em outros casos, a ingerência política é explícita e se torna impossível desvinculá-la do fraco desempenho das estatais. O exemplo mais claro é o da Petrobras. Desde o retorno de Lula ao Palácio do Planalto, a companhia adotou uma nova política de reajuste dos combustíveis, contestada pelos economistas por permitir defasagens maiores em relação ao mercado internacional. A insatisfação dos investidores com o intervencionismo petista é expressa pela surra aplicada às suas ações, que acumulam uma queda de 9% neste ano. É verdade que o setor petrolífero anda volátil, mas basta olhar para rivais para constatar que a estatal tem grande parte da culpa por este momento ruim. As ações da Prio, maior companhia privada do setor no país, acumulam alta de 9% em 2025. Lá fora, a ExxonMobil já vale 5% mais, e a Chevron, 2%. Tamanha diferença expressa o “desconto” que o mercado aplica aos papéis de empresas estatais, justamente por estarem à mercê de interferências políticas. “O fato de uma companhia ser estatal pesa no prêmio de risco da ação”, afirma Felipe Miranda, executivo-chefe da casa de análises Empiricus. “Esses descontos são particularmente relevantes quando temos governos como o de Lula.”
Para entender o que Miranda quer dizer, basta verificar como os ministros de Lula enxergam as estatais. A ala econômica, liderada pelo titular da Fazenda, Fernando Haddad, as encara como uma fonte de dividendos para ajudar a tapar o rombo fiscal. Isso, claro, no caso das companhias lucrativas. Quanto às deficitárias, as amarras ideológicas impedem que se encontre uma solução para reverter as perdas. A resistência a uma reestruturação dessas empresas parte de quem deveria liderar a iniciativa, a ministra da Gestão, Esther Dweck, que já declarou que o objetivo da reforma administrativa não é cortar gastos. Por mais que se escore no pretexto de promover a justiça social para defender a gastança, faria bem a Lula lembrar de outra lição deixada por Thatcher — a de que o bom samaritano só entrou para a história porque tinha dinheiro para bancar suas boas ações. Antes de pedir sacrifícios à sociedade, o governo deveria mostrar disposição para arrumar a casa. E isso começa, inevitavelmente, por fechar os ralos por onde escorre o dinheiro público.
Os Correios são um exemplo de como interesses políticos mesquinhos, má gestão e ideologia podem arruinar uma estatal. Há anos, a empresa acumula prejuízos. Em 2024, eles somaram 2,6 bilhões de reais — quatro vezes a perda que teve em 2023. A escalada não cessou. Apenas no primeiro trimestre deste ano, a conta ficou negativa em 1,7 bilhão de reais. Para a companhia, a culpa é da concorrência com as empresas privadas, da queda do volume de cartas causada pelo avanço das mensagens digitais e do governo Bolsonaro, que queria privatizá-la.
O acordo para arcar com metade dos 15 bilhões de reais necessários para cobrir o rombo do Postalis, o fundo de previdência dos funcionários, não entra no rol de desculpas dadas pela atual gestão, apesar de ser um dos principais motivos das dificuldades atuais. A incapacidade de reconhecer os problemas torna mais difícil sanear a empresa. “Sob essas condições, nem um prêmio Nobel de economia daria jeito”, diz Felipe Miranda, executivo-chefe da casa de análises Empiricus. “Como estatal, os Correios continuarão dando prejuízo.”
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