O ministério do ego de Lula
Ao tratar a opinião desairosa de uma revista estrangeira sobre o presidente como se fosse uma questão de Estado, o Itamaraty se converte em departamento das relações pessoais do petista
Tem sido difícil, mas há dias em que o governo de Lula da Silva se supera. Foi o que ocorreu quando o Palácio do Itamaraty – outrora um dos mais respeitados templos da sobriedade diplomática mundial – foi mobilizado para criticar um artigo da revista The Economist. Não uma resolução da ONU, não uma denúncia jurídica, não uma ameaça à soberania nacional, mas uma opinião jornalística. Resultado: uma nota oficial assinada pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira – quiçá ditada pelo chanceler paralelo, Celso Amorim –, que trata Lula como uma espécie de divindade contemporânea, um Buda com barba, ou, vá lá, um Kim Jong-un tropical.
Bater boca com a imprensa virou, tudo indica, uma nova função de Estado em Brasília. O próprio presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) já deu expediente como missivista contra artigos da The Economist e editoriais deste jornal. Mas nada se compara ao Itamaraty, que agora assume a função inédita de departamento de relações públicas do ego presidencial. A The Economist teve a temeridade de observar o que qualquer um com olhos e memória já percebeu: Lula está mais interessado em liderar o mundo do que o Brasil. Sua cruzada diplomática se apoia em um narcisismo que seria tocante se não fosse ridiculamente oneroso – para o erário e a reputação do País. A revista não acusou Lula de crimes, não forjou dossiês, não desrespeitou instituições: só cometeu a heresia de não bajular o demiurgo, expondo a contradição entre o discurso messiânico e a prática caudilhesca.
A réplica do chanceler não retificou erros factuais (o que chegaria perto de aceitável), mas compôs um salmo laudatório, declarando que Lula sustenta “os quatro pilares essenciais à humanidade e ao planeta: democracia, sustentabilidade, paz e multilateralismo”. Faltou um quinto pilar: a humildade – mas este Lula queima em holocausto diário em seu altar pessoal.
O chanceler Vieira nos informa que Lula “logrou criar uma ampla aliança global contra a fome e a pobreza”, ignorando que seus feitos no G-20 consistiram em consensos burocráticos e promessas vagas. É pungente a fé de Vieira em seu guia, mas talvez seja papel do Itamaraty promover os interesses do Estado brasileiro, não as ambições de seu presidente.
A megalomania que emana do Planalto é antiga, mas agora transborda. Lula já declarou que Deus “deixou o sertão sem água” porque Ele sabia que um dia o petista traria a salvação hídrica. Noutra ocasião, afirmou que seu corpo sofreu mais que o de Jesus Cristo. Isso antes de concluir que só Jesus “talvez” faria melhor na Presidência. Para quem se atribui missões celestiais, não surpreende um chanceler travestido de apóstolo.
Vieira pinta Lula como um campeão da democracia de autoridade moral “indiscutível” e um “parceiro confiável” no sistema multilateral. Difícil conciliar esse retrato com a insistência do presidente em ameaçar a liberdade de expressão sob pretexto de “moralizar” a internet. Lula disse que quer regular as mídias e redes sociais para punir “canalhices” – e, pela réplica de Vieira à The Economist, vê-se bem o que tem em mente.
Já seu compromisso com a paz e o Direito Internacional é tão seletivo quanto seus aliados. Putin, Maduro, Ortega e os aiatolás podem contar com sua tolerância. Contra Israel, Lula é valente. Já contra tiranos que prendem opositores, manipulam eleições e matam manifestantes, oferece panos quentes e um discurso mole sobre “soberania”.
A nota do Itamaraty não desmente a The Economist: a comprova. A caricatura do estadista messiânico, enamorado de si próprio, descolado da realidade e obcecado em manter o monopólio moral da política é cada vez mais indistinguível de um retrato fiel, que foi reafirmado ponto por ponto pela prosa vexatória do ministro das Relações Exteriores – agora convertido em um dos hagiógrafos de Lula.
É o velho projeto lulopetista de fusão entre partido, governo e Estado, com o agravante de que agora a diplomacia brasileira serve a um culto à personalidade. Quando se aciona o Itamaraty para defender Lula da opinião de uma revista, já não se está mais governando: está-se venerando. E isso, no fim, é menos uma demonstração de força do que de fraqueza.
Opinião do Estadão