Substituir os combustíveis fósseis nos transportes por alternativas mais sustentáveis é um dos maiores desafios atuais no planeta. Sozinho, o setor responde por 20% da emissão de gases causadores de efeito estufa no mundo relacionada à energia. Mas, de 2011 a 2021, o consumo de energias renováveis no transporte global teve um avanço tímido, de 2,6% para 3,9% do total empregado para mover veículos. Enquanto bilionários como Elon Musk e montadoras chinesas tentam dar impulso aos veículos elétricos, a aposta do Brasil para a transição energética dá preferência aos biocombustíveis. Gerados a partir de biomassas como cana-de-açúcar e restos de alimentos, essas fontes energéticas prometem não só reduzir as emissões de CO2, mas também dar destino a uma série de resíduos poluentes.
Nesse cenário de transição energética global, o Brasil vem se posicionando como protagonista. “A ideia dos biocombustíveis é algo pelo qual nós, brasileiros, temos que lutar”, diz André Clark, presidente da Siemens Energy, que produz tecnologia e equipamentos de geração de energia. “Há uma guerra geopolítica, uma briga para ver quem pode declarar que uma fonte é mais verde ou menos verde.” Foi esse o palco da disputa nas reuniões do G20 no ano passado, quando o Brasil conseguiu, ao lado de outros países, situar o biocombustível como uma solução para combater a mudança climática.
Para fortalecer essa posição, o país deu um passo importante com a lei do Combustível do Futuro. Sancionada em outubro de 2024, ela prevê elevação da mistura de etanol à gasolina e de biodiesel ao diesel, além de criar programas para outros biocombustíveis, como biometano e combustíveis sustentáveis de aviação (SAF, na sigla em inglês). A nova legislação veio reforçar uma tradição já consolidada no país. “O setor de biocombustível é muito maduro e tradicional no Brasil. Já somos uma potência de biocombustível há muitas décadas”, afirma Camila Ramos, fundadora da Clean Energy Latin America, uma consultoria da área de energia renovável.
O principal exemplo dessa tradição é o etanol, o maior caso de sucesso brasileiro no setor. O país adiciona atualmente 27% de álcool à gasolina (índice que agora poderá chegar a 35%), é o segundo maior produtor de etanol no mundo e, de janeiro a novembro de 2024, consumiu 19,7 bilhões de litros do combustível. Nos próximos dez anos, o etanol deve receber mais da metade do 1 trilhão de reais em gastos previstos com biocombustíveis — até 2034, a oferta pode chegar a 48 bilhões de litros.
Esse potencial tem atraído gigantes do setor energético. A inglesa bp (antiga British Petroleum) já vinha apostando no etanol brasileiro desde 2008 por meio de uma sociedade. No ano passado, ela comprou a totalidade da empresa que mantinha com a americana Bunge, criando a bp bioenergy. “É uma iniciativa muito bem alinhada com a nossa estratégia de transição de uma empresa de óleo para uma empresa de energia integrada”, diz Andres Guevara, presidente da bp no Brasil. Com onze usinas, por aqui tem capacidade de produzir o equivalente a 51 000 barris diários de etanol, mais da metade da meta global da empresa de gerar 100 000 barris por dia de biocombustível até 2030.
Além do modelo tradicional, o setor também busca inovações para aumentar a produção. Uma das principais é o etanol de milho de segunda safra, que pode contornar flutuações na oferta de cana-de-açúcar, muitas vezes vendida para o mercado alimentício, e não para o energético. “O açúcar é nosso painel solar biológico, com capacidade de converter energia solar em energia química sem precedentes”, diz Caio Dafico, diretor de negócios da Atvos. A empresa, que tem como sócio o fundo árabe Mubadala Capital, pretende investir 3 bilhões de reais nos próximos anos em biocombustível. A ideia é usar a estrutura já existente para a cana no milho, com usinas que devem entrar em operação em 2027 e 2028.
A expansão do setor levanta questões sobre o uso da terra, mas especialistas são otimistas. Para Luiz Augusto Horta, pesquisador da Unicamp e ex-diretor da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, o Brasil tem potencial para desenvolver tanto alimento quanto matéria para bioenergia. “Quem fala de disputa entre energia e alimento não conhece o que vem sendo feito”, diz Horta. “Só para pastagem, o Brasil utiliza quase 200 milhões de hectares — uma fração disso já bastaria para produzir o etanol necessário.” Além disso, a agricultura brasileira tem desenvolvido técnicas de manejo que tornam a produção mais eficiente e sustentável, permitindo a expansão sem desmatamento. Há também soluções como o etanol de segunda geração, feito com aproveitamento de resíduos vegetais.
Do bagaço ao tanque
O biometano surge como uma alternativa promissora ao etanol na transição energética. Segundo a Associação Brasileira do Biogás e do Biometano, a produção no Brasil deve crescer de 1 milhão para 7 milhões de metros cúbicos diários até 2029. A Gás Verde, empresa que atua no setor desde 2017, planeja converter dez de suas usinas de energia elétrica para gerar biometano, elevando a produção para 600 000 metros cúbicos diários em 2028. O potencial desse combustível é especialmente relevante para o transporte, pois permite a descarbonização de frotas de caminhões a diesel sem exigir grandes mudanças na infraestrutura.
“No setor elétrico brasileiro, não há muita dificuldade para a descarbonização, mas descarbonizar as frotas de caminhão que usam diesel é mais problemático”, afirma Marcel Jorand, diretor-executivo do Grupo Urca Energia e presidente da Gás Verde. Como pode ser produzido de forma descentralizada a partir de aterros sanitários, o biometano se apresenta como uma solução viável e sustentável.
A versatilidade do biometano se estende também ao setor industrial. “Tratar o resíduo com segurança é um grande problema das empresas hoje, e existe um potencial de circularidade total com o biometano”, diz Luiz Fernando Tomasini, gerente de implantação da re(energisa), braço de energia renovável do grupo Energisa. A empresa investiu 80 milhões de reais em uma usina que deve entrar em operação em setembro, em Campos Novos (SC), para tratar resíduos das indústrias locais e fornecer biometano e fertilizantes. Na Atvos, os resíduos da produção do etanol, ou seja, o bagaço, vão servir também para gerar biometano. A empresa vai construir em Mato Grosso do Sul sua primeira usina destinada ao biometano. Prevista para operar no fim de 2026, ela terá capacidade de produzir 28 milhões de metros cúbicos do gás — metade disso deve ser usada para substituir o diesel da própria frota da Atvos.
Completando o trio dos principais biocombustíveis, o biodiesel apresenta características únicas de reaproveitamento. A Biopower, empresa da JBS, surgiu para dar destino a resíduos da cadeia da carne e hoje trabalha com doze matérias-primas diferentes. “Queríamos o maior aproveitamento possível das matérias utilizadas”, diz Alexandre Pereira, diretor comercial da Biopower. Em 2024, inaugurou o primeiro ponto de abastecimento a biodiesel em Lins (SP). A empresa também mantém, desde 2016, o programa Óleo Amigo, que recolhe óleo de cozinha usado para a produção de biocombustível.
Asas para o futuro
Olhando para o futuro do setor, uma das maiores oportunidades é o desenvolvimento do combustível sustentável de aviação, que poderia contribuir para reduzir em 65% as emissões globais das aeronaves. “Estamos atrasados no uso de bioenergia renovável na aviação. O mundo desenvolvido inteiro já está fazendo isso”, afirma Horta. O Brasil tem potencial para avançar nesse segmento, sobretudo usando o etanol como matéria-prima, mas enfrenta desafios. De acordo com Horta, as especificações necessárias para a aprovação de um combustível na aviação são extremamente rigorosas e devem ser totalmente compatíveis com o querosene.
Apesar dos desafios, empresas já se movimentam nesse mercado. A Atvos tem planos ambiciosos para o combustível verde de aviação. “Esperamos nos próximos cinco anos desenvolver uma planta em escala industrial para produzir até 1 milhão de metros cúbicos por ano de SAF”, diz Dafico. O problema é que o SAF deve custar aproximadamente 2,5 a 3 vezes o preço do combustível convencional, e o país ainda precisa de mais incentivos para competir com outros mercados.
Nessa mesma direção, a Itaipu Binacional inaugurou no ano passado a primeira usina-piloto do Brasil para a produção de SAF, capaz de gerar 6 quilos diários de bio-syncrude, um petróleo sintético obtido com base em biogás e hidrogênio verde. Há sete anos, a usina já produzia hidrogênio verde por eletrólise e biogás utilizando resíduos da suinocultura. Segundo Enio Verri, diretor-geral brasileiro da Itaipu, a tecnologia está consolidada, mas o desafio agora é dar escala à produção e reduzir custos, o que exige parcerias com o setor privado. “As condições estão dadas. São dez anos de projeto e muita pesquisa, mas não dá para ficar só na teoria — você só aprende a nadar quando cai na água.”
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